Marília Bernardo Fernandes é o que eu costumo identificar como uma aluna perfeita. Atenciosa, respeitadora, legal, inteligente e simpática. É sempre bom conversar com ela nos intervalos da vida. Aprendo muito, muito mesmo com essa menina. Recentemente veio me mostrar um texto sobre um determinado povo. Bem, era tudo o que eu queria escrever. Abaixo segue o texto, é incrível e hilário. Já vou avisando: qualquer semelhança é mera coincidência ou qualquer coincidência é mera semelhança!
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Esta é uma
pequena história cujo caráter ficcional é meramente ilustrativo, uma vez que a
seguinte narração passaria despercebidamente pela mais pífia realidade. Um
aglomerado qualquer de seres humanos, em um nível desprezível de socialização e
esclarecimento, pode apresentar traços fiéis aos moradores de Moseley.
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Era uma cidade
pequena, de fato. Atingia sempre baixas temperaturas e isso era motivo de grande
reclamação entre seus moradores, incomodados com a pouca surpresa que o clima
proporcionava. Minúscula, poderia-se dizer sem medo de eufemismo, ainda que
quisesse parecer grande coisa perante outras cidades. Moseley localizava-se ao
norte daquele Imenso País Gelado. Sua política era fortemente enraizada em
tradições religiosas, fomentadas por uma família específica, que conduzia o
poder durante gerações seguidas. Era até natural tê-los no poder e nada era
feito quanto a isso, diante da aparente normalidade em se ter a democracia
burlada, ainda que legalmente. Paradoxal, deveras, mas nada que interferisse no
longo reinado da família Rose. Reinado - foi mesmo essa a palavra usada? Não que
o fosse, mas se assemelhava, o que era notado por aqueles que tinham uma
perspicácia aguçada e tinham de tolerar, por falta de meios, tal realidade.
A população,
em sua maioria, era de renda mediana, sendo esta baseada no turismo e venda de
madeira, dada a densa floresta que a rodeava. No inverno, famílias abastadas,
assim como a Rose, se mudavam para Moseley e por lá permaneciam durante o longo
período do inverno, que coincidia com os meses de férias. Um local apreciado
especialmente pelos mais jovens, que sentem um prazer peculiar em exibir suas
posses: as roupas de frio, todas de famosas marcas de material esportivo, eram
como uma espécie de farda obrigatória. Qualquer coisa diferente era até mesmo
vista com desprezo e um sentimento de inferioridade era instaurado em quem
ousasse ser original. Carrinhos de neve e equipamentos de esqui eram mostrados
como objetos de glória, ostentando um valor imaginariamente grande, mas que mal
sabem tais mentes tão vazias que nada daquilo havia sido fruto de seu próprio
trabalho ou mesmo imaginavam se seus pais obtinham toda aquela abastança por
meios honestos.
Outra coisa
peculiar em Moseley era a ignorância de seu povo. Era até compreensível em
camadas mais pobres, exploradas em épocas de campanhas políticas. Afinal,
quanto mais carente, menos seletivo é o povo, uma vez que a necessidade urge e
qualquer condição diferente da anterior é aceitável.
Contudo, a
ignorância instalava-se até mesmo entre os ditos esclarecidos.
Uma espécie de
música dominava, dentre todas as preferências musicais existentes. Um antigo
estilo musical típico do norte daquele Imenso País Gelado havia sido deturpado
e vendido como mercadoria, se passando por cultura. Continuavam a chamar de Fohò, mas não era o verdadeiro Fohò, como dançavam e cantavam os que
pertenciam às gerações passadas. As músicas atuais tratavam de futilidades e
eram especialmente ouvidas durante o inverno, pela população jovem que esquiava
em Moseley. Possuir boas motos de neve, ter um específico equipamento de esqui
e beber uma certa marca de whisky eram comportamentos defendidos. Não porque o
frio fosse excessivo e beber whisky fosse necessário, até porque não era o de
qualquer marca. Isso tudo porque grandes fábricas de bebidas patrocinavam os
novos “músicos” do Fohò e, pelo
dinheiro, a “música” virava uma grande propaganda, absorvida sem controle pela
população que, sem senso crítico, seguia a moda pela moda na desprezível
Moseley.
A cultura
nunca foi um ponto forte de Moseley, embora grandes festivais sejam feitos.
Essa cidade é mesmo cheia de paradoxos. Mas esse pode ser facilmente explicado:
os festivais são feitos para que a população esqueça seus problemas. Sim, essa
é a grande e essencial função do divertimento: aliviar. Um riso e uma boa
música aliviam a labuta de cada dia. Mas eis que os festivais de Moseley não
aliviam – sedam. Os bons músicos e poetas de Moseley terminam esquecidos ou
sufocados, porque o patrocínio e bons pagamentos só chegam aos músicos do novo Fohò.
Boas somas de
dinheiro chegam também àqueles que promovem a caça de ursos selvagens. Chamam
aquilo de Ursada. Praticam a Ursada eventualmente, numa grande festa regada a Fohò e bebidas, obviamente, pois ambos
estão relacionados. Laçam os ursos e fazem todo tipo de prática irracional sob
o argumento de que a Ursada é um esporte. É de fato uma realização que não
seria permitida na presença do discernimento, mas isto falta aos moradores de
Moseley. As autoridades nada fazem quanto à Ursada, pois elas mesmas participam
e promovem. Se não o fazem, fingem que não estão vendo qualquer atitude ilegal,
pois uma outra família bastante influente em Moseley conduz anualmente a
Ursada, os Porchini. Esta família domina vários ramos do comércio, inclusive o
das famigeradas motos de neve.
Moseley nada
mais é do que uma grande teia movida à troca de favores.
No mais, a
população não é amante da leitura e as boas obras terminam empoeiradas nas
prateleiras. Suprir hábitos verdadeiramente culturais é bastante caro em
Moseley: preços abusivos são pedidos pelos livros, que já não são de uma boa
variedade. Poucos os compram e viver da Literatura nunca foi um grande negócio
naquele Imenso País Gelado.
Nessa cidade,
nem mesmo a fé escapa do exibicionismo. Ter uma religião é preciso, mas não
somente uma: tem que ser justamente aquela cuja maioria participa, da religião
Caótica. É importante ressaltar que tal igreja e a política local andam
intimamente entrelaçados. Mas não deve ser mais nada demais. Certamente, a
prefeita de Moseley anda bastante interessada em doar dinheiro aos mais pobres.
O clero local, obviamente. Não há muitos pobres em Moseley que não sejam do
clero local.
Uma recente
construção de Moseley parece estar atraindo muitas pessoas: é a nova estação de
esqui. Lá, muitos passeiam e ostentam seu luxo aparente com gestos mesquinhos e
atitudes mais vazias ainda. Há quem vá pelo simples prazer de passear e
apreciar a companhia ou a paisagem, mas estes são poucos.
A nova estação
de esqui é uma vitrine humana, a melhor de todas, pois principalmente lá a
população de Moseley garante que todos os outros saibam que padrão de vida ela
possui exatamente.
Sair de
Moseley é, verdadeiramente, um grande feito. Quem viaja para outros países faz
questão de isto expor, não porque o turismo seja uma atividade interessante,
mas porque é preciso esclarecer de que a renda é mais do que suficiente para
poder abarcar as despesas que as passagens caras propiciam. Os mais jovens -
como sempre os mais jovens – são, principalmente, aqueles que adoram alardear
suas viagens. Em contato com outras culturas, eles sequer exaltam suas raízes.
Não. Eles escondem o pouco de cultura que puderam absorver de sua terra natal e
voltam para ela com a cultura do país visitado, do qual se sabe tudo.
Escreve-se muito bem o idioma estrangeiro e todos os hábitos de fora são
minuciosamente copiados, ainda que os principais países visitados sejam de
clima tropical. Há, inclusive, quem traga do exterior algumas pranchas de surfe
e maiôs de banho. Como se fosse possível usar tais coisas nas condições
naturais de Moseley. É de conhecimento geral que é um absurdo, mas dizer o que
se tem, ou melhor ainda, exibir, continua sendo o passatempo preferido daqueles
que moram em Moseley.
Essa cidade é
mesmo surpreendente.