Entre praguejo e acalorados elogios, me pega na madrugada deste belo dia para irradiar minha alegria com este belo texto. Que todo mundo sabe que sou fã da Marília Bernardo isso não é nenhuma novidade. Mas ao ponto de compará-la ao meu mais nobre escritor... ai já é demais? Nem pensar. Diante de seu último texto, meu amigo Rafael chegou a comentar que sua forma de escrever lembrava o mestre Douglas Adams. Neste novo texto, eu mesmo fiz as analogias. Achei de uma sutiliza tão brilhante que me fez lembrar a divindade, José Saramago. Chega de bajulação, ela é ainda maior que isso. Leiam, vale a pena, vale a galinha, vale a granja toda. Só tome cuidado, você poderá ser diagnosticado no fim do texto.
Ouvi certa vez um
cristão dizendo que a vida terrena era como uma sala de espera. Eis que não
tive oportunidade melhor para destilar a minha ironia.
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Suponha que há um novo Médico na
cidade. Muito se ouviu dizer sobre Ele, sobre Suas curas esplêndidas e sobre o
quão bom Ele é. Muitos dizem falar com Ele diariamente e um número maior ainda
de pessoas acredita em tal coisa, ainda que ninguém de fato pareça sequer ter
visto tal Médico pessoalmente. As pessoas que alegaram ter se consultado com o
Médico saem apregoando por aí os feitos Dele, dando supostos testemunhos e
relatando "milagres"; ainda que tais eventos sejam comuns no universo
da Medicina. Porém, sempre atribuem o termo milagre ao que desconhecem e mais
intrigante ainda é o desinteresse profundo em fazer tal coisa. Falar do que não
se sabe ou do que não se tem evidência são hábitos terríveis de quem se
consulta com esse Médico. Mas isso não parece incomodá-las e a certeza de que
agora elas estão sadias é confortável demais para fazê-las mudarem de opinião;
afinal, elas só reconhecem apenas um único Médico, que prometeu saúde eterna a
todas elas. O fato de não haver garantia concreta disso não é evidente para a
maioria. Não há a menor prova sequer de que tal Médico exista ou, que se
existe, seja bom, ou ainda, que se importe com seus pacientes.
No mais, quem se consultou com o
Médico desenvolveu a terrível mania de diagnosticar doenças nas outras pessoas
e a dizer que elas deveriam se consultar com tal Médico. Depois que alguém teve
a ideia de se consultar com esse Médico e, pior, de achar que todos deveriam
fazer o mesmo, a coisa ficou realmente feia naquela cidade. O Médico, por sinal,
dizem que tem uma série de requisições para que alguém seja Seu paciente. Quase
que mandamentos. Mas o comodismo, a inércia, de quem procura tais consultas não
permite indagações.
Nada de questionamentos. Funciona
melhor assim.
Doente ou não, havia gente lotando o
consultório do Médico, procurando por verdades e conforto. Havia tantos
profissionais certificados de sua eficácia à disposição, naquela mesma cidade,
mas eles foram postos de lado porque havia uma histeria coletiva de que apenas
aquele Médico era quem verdadeiramente curava.
As Clínicas em que o Médico
supostamente atendia eram ricas agora. Havia uma imensa e inegável procura.
Muitos Enfermeiros executavam procedimentos alegando estar fazendo o que o
Médico mandara. E, se algo saísse errado, era "porque o Médico quis".
Os pacientes não questionavam se os Enfermeiros eram capacitados, simplesmente
confiavam. A tal da fé. E se fosse a Enfermeira Chefe quem estivesse fazendo o
procedimento, aí é que não havia a menor indagação mesmo. Diziam que ela era a
mãe do Médico e que O ajudava quando Ele estava ocupado. Assim, ela O ajudava
sempre.
Sentadas nos sofás e cadeiras da
sala de espera, as pessoas aguardavam pacientemente ou não a sua vez. Alguns se
achavam mais dignos do que os outros de serem atendidos. Outros tinham certeza
de que o propósito do Médico era o de curá-los, exclusivamente, como se fossem
os únicos realmente necessitados da cura. Quem se consultava com o Médico
também se achava mais sadio do que quem não o fez. Havia também a crença de que
as consultas deveriam ser regulares, semanais.
Que estivessem doentes ou não.
Fazia-se um certo silêncio na sala
de espera, onde todos acreditavam verdadeiramente de que seriam atendidos. A
maioria lia panfletos e livros sobre o Médico, o que era uma soma considerável
de leituras. No silêncio, alguns procuravam por algum sinal de que o Médico
estivesse mesmo lá dentro da sala Dele. Faziam um esforço e nada ouviam.
Ninguém entrava ou saía do consultório. Uns poucos, com o passar das horas,
desistiam de ficar ali porque chegavam à óbvia conclusão de que foram
enganados.
Não havia Médico algum.
Não havia nada ali.
Nada.
Nada mesmo.
Nenhuma explicação para a sua
doença, se afinal doenças existem mesmo, se é possível curá-las, quais são
curáveis, como se tratar, por que as doenças existem, por que pessoas boas
adoecem, se só é saudável quem vai ao Médico e uma porção de perguntas
importantes que são diariamente caladas porque incomoda ainda não ter as
respostas. O que definitivamente não significa que se deve calá-las.
Perguntas são importantes.
A partir delas, algumas pessoas,
ainda que poucas, puderam notar que algo estava estranho na sala de espera e em
tudo o que se referia ao Médico. Tudo começou com pequenas perguntas
mentalmente feitas e uma leve desconfiança de que algo estava errado, o que
desencadeou a importante ação de deixar a Clínica e de procurar por
profissionais eficazes, por respostas satisfatórias, por evidências. Por algo
não somente sensível, mas por algo racional.
O Médico não era nenhum dos dois.
Para os que perceberam que foram
enganados, foi um bom negócio ter concluído que o Médico não existe. Boa parte
deles também concluíram que nunca estiveram doentes, e os que ainda se sentiam
assim, procuraram por real ajuda.
Para os que continuam na sala de
espera, acreditando cegamente nos panfletos da Clínica, no que se ouviu dizer,
e sequer questionando a existência do Médico e também não pretendendo fazer tal
coisa, há um evidente diagnóstico.
Ignorância.