sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Se eu fosse eu.

Galera, comentei esta semana na primeira aula de Filosofia para inúmeras pessoas o quanto gosto deste texto da Clarisse Lispector. É uma pena que as redes sociais tenham, de certo modo, banalizado a figura desta ilustre escritora. Refletindo sobre as questões existenciais, nos deparamos em sala de aula que pouco conhecemos daquilo que julgamos realmente conhecer. Abaixo, o texto:

Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor SENTIR. 

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida. 

Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei. 

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro. 

"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. 

No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teriamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos emfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.


Texto extraído do livro A Descoberta do Mundo de Clarisse Lispector. Ed Rocco, pg. 156

3 comentários:

  1. "Ser realmete você" é um ótimo conselho para aqueles que vivem de aparências, se esforçando o máximo para esconder seu próprio "eu", vestindo as marcas mais caras e reforçando seu ego através de uma maquina que, teoricamente, serviria apenas como meio de transporte. Se escondem por trás dos refrãos mais medríocres, que são consagrados pela massa, para poderem se "enficar" numa sociedade cada vez mais vulgarizada.

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  2. Obrigado Lucas por tirar toda a beleza do texto com um comentário tão inteligente quanto. kkkk Brincadeira, apenas pra te elogiar, como não me canso disto! hahaha. Boas palavras, muito boas.

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  3. Cara, você vai ser o professor de filosofia que eu vou citar nas minhas histórias de vida que eu vou contar pros meus filhos, aquele que me deu um empurrão para o fato de eu "amar a sabedoria" como eu faço hoje. Muito obrigado! O conhecimeto é poder, poder para mudar pessoas e natureza. Que você continue despertando a criança que começa a adormecer naqueles que envelhecem, e os tragam para "a ponta dos pelos do coelho" para que possam visualizar "os olhos do mágico", a mágica de você saber que, no final de tudo, não sabe de nada. Valeu, professor! "Grandes poderes trazem grandes responsabilidades"...

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